Mais pobre do que Vossa Senhoria é Severino do Aracaju, que não tem ninguém por ele, a não ser seu velho e pobre papo-amarelo. Mas mesmo assim eu quero ajudá-lo, porque Vossa Senhoria é meu amigo. (Ariano Suassuna, In Auto da Compadecida, 1959).
Meus caros, um das necessidades espirituais do homem é a de se posicionar entre o certo e o errado. O ser humano tem uma precisão de afirmação, de que seja julgado moralmente. A todo momento, aliás, estamos julgando atos e omissões, nossas e dos outros. Ainda que não sejamos juízes, fazemos juízos, a partir de nossa história de vida, com base em valores em nós arraigados durante nossa formação enquanto pessoa. Ultimamente, conversando com os mais velhos, inclusive, percebo uma exacerbação do discurso de que a juventude não tem mais educação, que as pessoas já não se importam com as outras, há um excessivo individualismo, que os jovens não mais respeitam os idosos. Quando me peguei concordando com um colega, pai de família revoltado com essa tal lei das palmadas, entendi que também tinha ficado velho.
É fato de que os jovens de hoje, como cada nova geração que sucede a outra, mudam os códigos de conduta, transformam, ressignificam e dão nova dimensão aos códigos sociais. Nessa transmutação, perdem-se alguns códigos sociais importantes, sendo que prá mim o mais grave é a perda da cordialidade.
Porém já me peguei tentando entender se essa cordialidade de fato desaparece, vez que, no sentido sociológico do mesmo, descrito por Antonio Callado e por Sérgio Buarque, significa aquele que age com o coração (cordis, em latim). Antes de ser gentil, o brasileiro é emocional. Mas aí, numa seara na qual o ser humano se transforma na mais brutal besta-fera nos dias de hoje, qual seja, o trânsito urbano, dou de cara numa manhã de sábado em plena Senhor dos Passos, com um senhor puxando um daqueles carrinhos de badameiros cruzando a avenida. Paro o carro, ele agradece, avança, mas pára, súbito, diante daquela via exclusiva dos ônibus. Qual não é minha surpresa ao ver que um motociclista para sua moto e a coloca na faixa dos coletivos, e começa a sinalizar para o motorista do ônibus para que o velhinho passasse com sua carroça. Além de contribuir para quebrar meu preconceito com o pessoal de duas rodas, o evento sinaliza essa chama de gentileza que nos mantém em sociedade.
Mas a dimensão sociológica de falam Callado e Buarque, do brasileiro emocional, tem um componente perverso, que é traduzido pelo famoso jeitinho brasileiro. E o que seria o tal jeitinho senão a prevalência do emocional sobre o racional? Levado ao âmbito institucional, o jeitinho explica as diversas deformidades do nosso sistema jurídico, com a prevalência da amizade sobre a lei. Ora se não era do velho coronel baiano a máxima preferida: aos amigos, tudo, aos inimigos, a lei?
Mestre Nelson lamenta a perda desse senso emocional dizendo que já não se mata por amor como antigamente. Com efeito, histórias trágicas de amantes mortas hoje em dia são muito mais por motivos vis como pensões e heranças do que por paixões avassaladoras e doentias, como no passado. Bruno não merece metade da misericórdia de um Lindomar Castilho, por exemplo.
Misericórdia. A mãe da justiça, nos dizeres de João Grilo.
No Auto, o encerramento se dá exatamente no juízo final (para os mortos) no qual o Diabo no papel de promotor se apega a leis e alfarrábios cristãos para enumerar as acusações aos mortos e estas vão sendo desmanchadas uma a uma, ora por João, ora pelo próprio Jesus, até que, no indefensável do julgamento, João Grilo apela para a misericórdia, encarnada pela Compadecida, Nossa Senhora. Engraçado é que os únicos que não precisam da interferência dela e vão direto para o céu por interferência de Jesus, são os cangaceiros, o cabra e seu chefe Severino de Aracaju.
Aracaju, a prima do litoral. E nessa tarde de domingo no Batistão, onde o River (Rio) Sergipe se torna Plate, em honra dos hermanos, deu-se o embate. Touro X Severino.
Fluminense vem de flúmen, que é o habitante das regiões ribeirinhas, segundo o filósofo Samuel. Prata ou Sergipe, o River veio pra cima do Touro e um toque de mão (fora da área segundo alguns) transforma-se em pênalti para os severinos. Amigos, o cangaço é cruel. Severino, no Auto da compadecida não sabe quem é ela:
“Foi coisa que nunca conheci. Onde mora?E como chamá-la?” (Auto da Compadecida, ato 168)
Pois Aloísio conhece, o Flu-grilo se apegou a ela, e nosso goleirão defende o pênalti, para alívio apissiano.
Segue o Touro nesse julgamento, e se mantendo na defesa para sair em contra-ataques. Com Petros no lugar de Gladystone, o meio campo parece girar um pouco melhor, com Gil e Júnior Gaúcho fechando a frente de zaga, mas o jogo seguia corrido.
Quando íamos pro intervalo sem novidades, eis que um chute de fora, como um disparo de fuzil de cangaceiro, coloca o River na frente. Aí não se cabe apelar para a misericórdia, mas lamentar a profunda injustiça. Caberia ao Flu-Grilo conseguir o jeitinho?
Vem o segundo tempo e o Flu avança firme. Entra Roni, atacante, o Flu resolve arriscar mais, e a Compadecida resolve nos agraciar, não sem uma dose de talento. Em jogada trabalhada por Ribinha, Petros e Júnior Mineiro, este último decreta a justiça divina. Sim, Severino, Feira é de Sant´Ana, mãe da Compadecida, e intercedeu por nós. Salve Santana, Padroeira do Lugar...
O jogo segue aberto, com ambas equipes buscando a vitória, mas o lance derradeiro fica para a nova chance de quebra do tabu. Sim, amigos, existe uma maldição sobre esse meia do Flu chamado Petros. Ele simplesmente não consegue acertar o gol. Pois nesse domingo não foi diferente, só ele e o goleiro. Naquele momento em que um átimo de segundo decide um jogo, uma vida, falta o instinto matador. Falta o desconhecimento da misericórdia. Severino matava porque não titubeava em julgar. E, senhores, se tem um ser humano que está impedido de julgamentos, este é o centro-avante. Como os carrascos, como os bandoleiros, como os cangaceiros, a ele só cabe executar. Mas Petros não é centro-avante. Petros não é Severino.
E assim, o Flu, se não alcança o paraíso dos cem por cento de aproveitamento, se vai ao purgatório do empate, porque foi misercordioso com os severinos. Resta saber se estas concessões à cordialidade não vão fazer falta adelante.
Que em casa, o Flu se lembre das pugnas e volte a ser miúra, sem pena dos Severinos. No mercy. Porque se trata de Morte e Vida, Severina que é essa Série D.
*Cristóvão Cordeiro – é professor, engenheiro, torcedor taurino e julga estar divertindo os torcedores do Flu de Feira.
PS1: Ápis é o touro sagrado do Antigo Egito. Daí o adjetivo apissianas.
PS2: Ariano Suassuna escritor e dramaturgo paraibano é um dos ícones da literatura nordestina e autor da peça mais popular da história do teatro brasileiro – Auto da Compadecida, a quem essa série de crônicas presta singela homenagem como Suassunianas